Monday, September 27, 2010

A cartomante

Este conto foi reescrito a partir do conto "A cartomante" de Machado de Assis, mas sob o ponto de vista da personagem Rita


A primeira vez que Rita o viu, na capital, não percebeu nada significante. Se o encontrasse de novo após anos certamente teria esquecido até o nome. O rosto era jovem, os gestos e palavras denunciavam certa imaturidade. O próprio marido de Rita, Vilela, era jovem, porém já juiz, envergava atitudes de responsabilidade que o poder da profissão pedia.

Quando ainda morava na província era comum Rita andar empinada ao lado do marido. Sentia orgulho e satisfação de ser a esposa de juiz. Achava que o marido lidava com muitas coisas complicadas e assim que ele se punha a falar sobre o trabalho, ela prontamente replicava que lhe parecia tudo muito complicado e que ela deveria saber sobre as estampas da moda, isso sim lhe parecia interessante.

À época que mudaram para a capital, o marido ainda era importante, mas tantas andavam empinadas que Rita sentia sua importância não ser a mesma. O casal visitava novos amigos na capital e sempre havia alguém com uma cortina mais bonita ou uma roupa mais moderna. A capital abateu o espírito de Rita.

Tempos depois seu ânimo foi mudado. O que poderia ser a não ser o amor. Camilo, amigo do marido que não possuía nada de significante, a não ser imaturidade, chegou um dia a casa de Rita e Vilela molhado pela chuva grossa que caia. Enquanto Vilela não chegava em casa, Rita pos-se a observar Camilo. Os cabelos escuros e lisos, molhados, grudavam-se a nuca e a testa do rapaz. A barba começava a espetar e se deixasse crescer, certamente seria mais grossa que a do marido, Rita pensou.

Aos olhos de Rita, Camilo parecia um menino que deveria cuidar e instântaneamente se encheu de amores. Falou que poderia se enxugar em um quarto e providenciou-lhe roupas limpas e secas do marido.

A oportunidade de alcançar seu objeto de paixão aconteceu meses depois, através de um infortúnio. A morte da mãe de Camilo. Enquanto o marido ajudava nas questões legais e financeiras, Rita prontamente cuidava do seu menino. Alimentou seu corpo e sua alma. Rita podia ser fútil, mas nas questões do amor era esperta. Quando percebeu que Camilo a olhou como mulher, decidiu que teria ele de qualquer maneira.

As escolhas dos perfumes eram propositais e certeiras. As roupas eram as mais macias aos toques e ao mesmo tempo misteriosas, deixando ver as partes do corpo que eram estratégicas. Sim, Rita tinha nascido para ser sedutora. Ela bem sabia que poderia roubar homens de mulheres mais bonitas que ela, apenas observando o homem e utilizando seu próprio cheiro de mulher.

A sedução foi rápida e certeira. As tardes de paixão enquanto o marido estava fora eram seu alento na capital. Camilo, no entanto, transparecia culpa após os encontros. A culpa foi aumentando tanto que Camilo parou de frequentar a casa de Vilela. Rita, em desespero, foi a uma cartomante, indicação de uma amiga. Sem sua paixão sabia que sucumbiria naquele lugar a que não pertencia.

A casa da cartomante era escura. Mesmo sendo dia, Rita esbarrou em pelo menos dois móveis. Assim que sentou-se em frente a mulher morena, começou a examinar o lugar. Percebeu que as cortinas não combinavam com o tapete, um parecia ser de origem árabe e outro indiano.

Após alguns segundos de silêncio a cartomante afirmou a Rita que ela estava apaixonada. Empolgada, ela prontamente confirmou e replicou que gostaria de saber se era correspondida. A cartomante retirou um baralho de dentro da roupa, exatamente onde deveria ser o sutiã. As cartas estavam amareladas e amassadas nas pontas. Assim que terminou de embaralhar as cartas, a cartomante pediu para Rita dividir a pilha de cartas ao meio.

Rita, que ainda não retirou as luvas, começou a suar de nervoso. A cartomante franziu as sobrancelhas e ficou em silêncio por alguns segundos, mas logo disse a Rita que não precisava se preocupar, o seu objeto de paixão a amava mais do que tudo. Neste momento Rita voltou a respirar. Voltaria a ver Camilo. Agora sabia disso.

O que Rita não sabia era algo que os traidores pouco percebem, perdidos na força dos casos amorosos: a mudança de comportamento é a maior prova da traição. As pistas físicas às vezes pouco importam, mas os esquecimentos, a falta de toque e o olhar, mudam sempre. Portanto ela permanecia tranquila com relação a Vilela.

Um dia quando o marido saiu para o trabalho, Rita deitou no sofá. Fechou os olhos, pensando em Camilo. O sorriso que possuía era de pura felicidade e estava surda aos passos de uma pessoa que se aproximava. Não viu a sua morte, executada rápida por uma arma, e morreu feliz em seus pensamentos nos braços de Camilo.

Monday, September 20, 2010

Era uma vez um menino, seu pai e sua professora

Meu pai foi preso faz algum tempo. Eu estava no quintal e ouvi gritos dentro da minha casa. Fui correndo ver. Quando cheguei na porta da cozinha, meu pai estava no chão e um homem entortava seus braços para trás. Enquanto isso vários homens bagunçavam a cozinha. Um dos homens do grupo me viu e perguntou se eu era filho do homem ao chão. Eu emudeci, porque estava com medo. Então resolvi fugir. Não consegui correr para muito longe por que o homem que tinha falado comigo me alcançou logo.

Pelo braço fui levado até um carro da polícia parado em frente da minha casa. Meu pai foi em outro carro logo a frente do meu. Na delegacia não ficamos juntos. Fui levado até uma sala com apenas um banco de madeira, uma pia velha, armários e uma geladeira marrom. Enquanto eu explorava a geladeira chegou uma moça de calça jeans e óculos de aro grosso.

A moça de calça jeans tinha voz mansa. Enquanto ela me explicava que meu pai guardava em casa alguns produtos que não eram permitidos, eu acabei me acalmando. Ela também me perguntou sobre minha mãe. Respondi, olhando para os pés da moça, que ela tinha morrido.

- Você tem algum parente que possa ficar com você? Uma tia ou avó?

Eu tinha muitos parentes. Todos eles moravam perto da minha casa, mas eu não queria ficar com nenhum deles. Queria morar sozinho. Não teria ninguém para me encher o saco. Talvez eu pudesse morar com a professora que ensina a escrever. Ela tinha um cheiro bom e a mesma voz mansa da moça de calça jeans. Diante do meu silêncio ela repetiu a pergunta.

- Então, você tem algum parente que possa ficar com você?

Respondi que não. Acho que não acreditaram em mim, porque a tia Conceição foi me buscar algumas horas depois. A tia Conceição não tinha filhos e nem marido. Para mim ela não tinha filhos e nem marido porque ninguém gostava dela, principalmente eu.

Na casa da tia Conceição as coisas pioraram, pelo menos para mim. Eu não podia sair a hora que eu quisesse. Com o papai era mais fácil. Como ele sempre estava no bar, ele não via quando eu fazia minhas viagens com meus amigos. Um dia estávamos na praia e no outro podíamos tomar conta de carros no centro. Quando eu chegava em casa tarde da noite, papai já estava dormindo.

Deixei de ir na casa da professora também, porque minha tia mandava eu limpar a casa toda. Se ela chegasse em casa e houvesse um só tiquinho de poeira ela tirava um chicote da bolsa que voava na minha direção. Era um chicote esperto, pois sempre voava nos lugares que mais doíam no meu corpo.

Um mês depois da prisão do meu pai a professora que me ensinava a ler veio até a casa da tia Conceição. Como ela não estava em casa, fiquei com medo de abrir. Fiquei bem encolhido e quieto debaixo da mesa para a professora não me ver. Ela chamou por um bom tempo. Continuei debaixo da mesa mesmo depois da professora parar de chamar. Só sai quando vi a porta se abrindo. Era tia Conceição chegando do trabalho.

A professora voltou muitas vezes depois. Até que finalmente encontrou minha tia em casa. Ela chegou com a voz mansa de sempre. Eu espiava do quarto, atrás da cortina que servia de porta.

- Eu sou a professora do Joelson. Faz muito tempo que ele não aparece em minhas aulas. Ele já perdeu muita coisa. Então vim aqui deixar a lição para ele.

A voz mansa da professora não acalmou minha tia. Ela falou secamente que eu já ia no colégio, que eu não precisava mais de estudo. Minha tia, então, fechou a porta.

Minha professora não desistiu. Ela voltou no dia seguinte. Desta vez não me escondi e atendi a porta na primeira batida. A primeira coisa que ela fez foi me abraçar e a segunda foi dizer que sentia minha falta. Deixei a professora entrar e conversamos sobre as coisas que eu fazia, conversamos sobre os outros alunos e conversamos sobre meu pai. Antes de ir embora ela me perguntou:

- Você visitou seu pai na prisão?

Eu respondi que não e que tia Conceição sempre falava que era longe demais para me levar. A professora combinou comigo um dia para irmos até a prisão e visitar meu pai.

No dia que fui visitar meu pai, tomei um banho caprichado e até lavei a cabeça. A professora me pegou em casa e fomos para o ponto de ônibus. Acho que o ônibus demorou um tempão para chegar até a prisão, mas eu nem percebi. Colocava minha cabeça para fora da janela para sentir o vento e a professora sempre me puxava de volta para o banco. Quando cheguei na prisão havia uma fila enorme para entrar. A maioria das pessoas traziam sacolas junto, outras também tinham colchões e cadeiras. A professora diz que muita gente dorme na fila para entrar mais cedo e ter um tempo maior com quem está visitando.

Eu achava que a prisão não era tão ruim assim. Depois que visitei meu pai mudei de ideia. Muitos homens que estavam lá tinham um olhar assustador e os que não tinham este olhar, tinham um olhar assustado. O meu pai estava com o olhar assustado. Eu não tinha muito o que falar e nem meu pai. Eu não conversava muito com meu pai em casa e na prisão eu tinha muito menos para falar. Eu fui embora com a impressão que meu pai estava sofrendo ali. Eu nunca tinha visto meu pai sofrer. Ele sempre estava no bar com os amigos, rindo muito e com o copo de cerveja do lado.

Meu pai pegou uma bituca de cigarro em um canto do pátio e eu olhava para todo mundo ali, mas pensava só no meu pai. Aquela visita na prisão me deixou com medo. Eu tinha medo de muitas coisas: chicote voador, revólver e até cachorro. Porém aquela imagem do meu pai na prisão me assustou tanto que prometi a mim mesmo que evitaria aquele lugar a todo custo.

Monday, September 13, 2010

Estranhos

Central do Brasil, Rio de Janeiro. Linha do trem para Saracuruna, saindo às dezoito horas e trinta minutos. Uma enxurrada de gente desaba sobre os vagões. Em um deles, Simão entra logo depois de Pedro. Este consegue um assento próximo a porta, aquele não teve a mesma sorte.

Simão desloca uma alça da mochila de um ombro para fora e passa a apoiá-la apenas no outro ombro. Retira um livro de dentro da cansada mochila. Pedro olha para cima e lê a capa; Patricia Melo, O Matador. Também observa que o livro que o homem começa a ler à sua frente tem a marca de um sapato na capa. É como se alguém houvesse pisado em cima do livro. Em seguida, observa que a pele de Simão é de um negro gasto e que sua bermuda está manchada de tinta branca. A mão que segura o livro mostra dedos cheios de calos. A outra mão, que segura no suporte do trem, é gasta da mesma forma. O rapaz se sente incomodado e olha para as próprias mãos.

Um vendedor de pentes passa e esbarra em Simão para oferecer o produto a Pedro, que nega. Tinha nojo de alguns produtos vendidos no trem. Pedro volta a olhar Simão e imagina que o cara deve ter até uma vida melhor que a dele, afinal, para ler um livro em pé dentro de um trem às 18:30, a pessoa deve estar muito tranquila em relação à vida. Ele não conseguia se desligar assim. Estava pensando na briga dos pais na noite anterior. Fechou os olhos e mergulhou em seus problemas.

Simão ficou aliviado quando Pedro fechou os olhos. Estava incomodado com o jeito que o rapaz reparava em suas roupas. Tinha certeza que o menino metido à besta achou que ele era mais um pobre naquele trem. Na certa, também pensou que estava apenas fingindo ler o livro. No entanto, Simão estava lendo para valer aquele livro. Tinha encontrado-o na semana anterior: um senhor dormira em um banco do trem com o pé bem em cima do livro. Simão retirou “O Matador” debaixo do pé daquele homem e perguntou para o senhor e para as pessoas em volta se o livro pertencia a alguém. Como todos negaram a posse, Simão tomou para si o objeto. Simão não entendia tudo o que lia, mas achou interessante a história de um cara que se torna matador de aluguel por acaso. O menino metido à besta acordou. Simão imaginou que ele tinha uma vida tranquila, pois dormia em um trem como se nada estivesse acontecendo.

Simão desceu na estação de Piedade. Na pressa, deixou cair o livro. Pedro recolheu o livro do chão e até tentou entregá-lo, mas a multidão levou Simão junto. Os dois estranhos não voltariam a se encontrar de novo. Pedro começou a ler “O Matador” e só conseguia lê-lo no trem, uma vez que seus pais continuavam a gritar muito em casa.

Monday, September 06, 2010

Os Mequetrefes

Em um banco de praça Sandoval lia seu jornal de todo dia. Um estranho senta ao seu lado arregala os olhos e diz que o código vermelho foi disparado.

Sandoval dobra o jornal e replica que não se pode dar código vermelho assim à toa. O homem fala que é sério e que realmente foi disparado um código vermelho. Sandoval diz não acreditar, se fosse um código amarelo ou abóbora até ia, mas vermelho não era possível. Voltou ao jornal.

O estranho apenas alerta Sandoval sobre os Mequetrefes. Estavam chegando na cidade aquela semana. Agora Sandoval se assustou. Seja quem for os Mequetrefes então deviam ser perigosos. Um código vermelho mais um grupo misterioso não era algo a se ignorar. Quando pensou em perguntar ao estranho sobre os Mequetrefes. O estranho levanta e vai embora como se nada tivesse acontecido.

No dia seguinte, no mesmo banco de praça, Sandoval lia o jornal. Tinha esquecido quase completamente o estranho do dia anterior. Quase, porque ainda dava olhadelas em volta quando terminava um artigo. No meio de um artigo chega o estranho novamente.

Os Mequetrefes estavam tramando algo com o grupo Biocular. O código vermelho passou a ser roxo agora. Sandoval duvidou. Não existe código roxo. Começou a acreditar só quando lembrou da ótica que tinha comprado seu ultimo óculos. A ótica chamava-se Biocular. Agora tudo se encaixava. Perguntou ao estranho se existia alguma solução. O estranho afirmou que sim, porém só poderia lhe passar os planos no dia seguinte.

A semana inteira foi uma troca de códigos entre Sandoval e o estranho, sempre no banco da na praça. Quando chegou a sexta-feira e o estranho não chegava, Sandoval se preocupou. Procurou nas páginas policiais alguma pista. Encontrou uma notícia sobre um corpo que tinha sido encontrado no rio da cidade e a polícia ainda não tinha identificado. Ao lado da notícia vinha em letras garrafais a propaganda da ótica Biocular.

Sandoval nunca mais apareceu na praça. Só lia o jornal na segurança do seu lar. Por via das dúvidas também mudou de ótica.